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Excerto de "Poortugal"

 

      "O Zé é português. Um português gosta de ser português, gosta de defender a sua pátria, a sua nacionalidade, o seu pedigree. Um português gosta de ter a bandeira à janela, sobretudo se for um brasileiro a incentivá-lo a fazê-lo. Um português gosta de vinho fino, rissóis, croquetes, calamares, perninhas de caranguejo e outras coisas tipicamente portuguesas. Gosta de bons carros, de boas casas, de exagerar, de aldrabar, de ser chico-esperto. Um português que se preze gosta de parecer rico, de parecer inteligente, de parecer importante, de parecer influente, de parecer melhor que os outros, de parecer o melhor de todos. Um português é um ser especial, e faz questão de o provar. Sim, porque um português não se impressiona com as façanhas dos outros – um português é capaz daquilo e de muito mais, só não tem tempo para o fazer. Quando um português vê alguém, sobretudo outro português, a criar algo ou a obter resultados do seu empenho, de imediato o descredibiliza, pois o que fez ou o que inventou também ele era capaz de inventar, e até se pode dar ao luxo de opinar sobre essa criação e de lhe acrescentar detalhes que fariam toda a diferença. Porque esse português que singrou só o fez porque teve sorte. O mérito é um dos maiores entraves à nossa progressão cultural, porque ninguém o tem. Isto é tudo uma sorte, e há os que a têm e os que não a têm. Quem tem sorte, pode avançar, quem não tem fica quieto até que ela apareça. Também existe o fator C, esse grande orientador dos nossos esforços. O português mexe-se se perceber que alguém pode dar o jeito, ou se alguém conhece alguém importante. Nessa altura, o português empenha-se; aliás, é o período de maior empenho de um português, pois geralmente, quando consegue sacar o emprego ou o cargo que persegue, conclui que foi alcançado o seu fim. A partir daí não precisa de se esforçar mais, apenas fica a olhar para os outros e a invejar a sorte que têm. É que ele podia ter tido mais sorte, nunca é suficiente. Porque o português é ambicioso, gosta de subir na vida, mesmo que não mereça. A escalada da vida obriga a muitas sujeições, mas o português é exímio nesse polimento dos sapatos alheios, aqueles que lhe garantem uma subida segura."

 

In Poortugal, Richard Towers, Neoma Produções, págs. 263-264

 

Excerto de "O Desafio"

 

    "As crianças brincam. São espíritos felizes. Correm, saltam, gritam. Para lá do vidro, tudo parece mais claro, mais puro, como a neve que cai numa cadência mágica, num silêncio hipnótico. É um dia frio de Inverno, a temperatura ronda os dez graus abaixo de zero, mas há um calor que nasce de dentro e inspira. Sei agora que nunca voltarei a ser o mesmo. Sei que nunca voltarei a olhar para o mundo da mesma forma. Há toda uma verdade escondida para lá do que é óbvio, para lá do espetáculo que a vida e o mundo nos oferecem. Sei, porque o descobri. Descobri que vivemos uma ilusão e que, ao virar da esquina, a sorte ou o azar espreitam para nos derrubar. Não podemos escapar, nem desistir. O nosso destino é ir até ao fim. Olho para lá do vidro e compreendo o significado de uma vida em busca de felicidade. A felicidade está ali, nas crianças que saltam, e correm, e gritam. A felicidade está nessa contemplação, não no tabuleiro que enfeitiça. O objetivo é a vida, não o jogo. Por isso o abandono, por isso viro costas, mesmo sabendo que jogando, poderia tornar-me um deus. O abismo e a luz coabitam no mesmo espaço. Cabe-nos a nós escolher por onde queremos caminhar. Caminho para a saída, para a luz. Abro a porta, miro o espaço uma última vez, numa despedida do passado, no fechar de um capítulo. Todos temos uma segunda oportunidade. Eu sou a segunda oportunidade. Desço as escadas em caracol. Não sinto a náusea do trajeto, nem o agreste corrimão que me arde sob as mãos. Apenas sinto o alívio da escolha. E fecho a porta atrás de mim com um sorriso firme. Porque estou seguro da minha opção."

 

In O Desafio, Richard Towers, Neoma Produções, 2012 (págs. 297-298)

 

 

Excerto de "Reflexos"

 

    "Quando levantou a cabeça, pôde mirar-se no espelho, constatando um novo estado de espírito, uma nova chama brilhando nas íris, qual renascer inspirado. Sorriu. Gotas insubmissas escorriam-lhe pela face, caindo, insonoras, na pia branca. Ficou algum tempo a observar-se. Era por vezes assustador constatar que ele era aquela pessoa. E, se olhasse com atenção, de forma profunda, podia perceber que não se reconhecia, que não se identificava com aquele ser, aquele homem, aquela máscara que transportava todos os dias. Deixou-se levar até ao limiar do desconhecido e desviou a cara irreconhecível do espelho. Usou a toalha castanha como refúgio da alma. Esfregou bem os olhos e toda a face e voltou a colocar a toalha no suporte. Lançou novo olhar para o seu reflexo, usando de uma certa abstracção para não se enredar em pensamentos metafísicos desnecessários, mas não deixou de se sentir algo preso a questões que o atormentavam, de tempos a tempos, e que voltavam a toldá-lo naquele momento. Quantas vezes se detivera, olhando para as formas que assumia diante da superfície espelhada? Quantas vezes se perdera diante de si próprio, tentando encontrar-se num estranho labirinto que se formava nos seus olhos, qual fosso profundo e infindável? Quantas vezes se questionara acerca da verdade escondida por detrás daquele olhar, por detrás da sua máscara? Por mais que se aventurasse, por mais longe que se lançasse à descoberta de si, mais questões surgiam e menos se conhecia. Era um caminho impossível. Teve de abandonar a demanda, mais uma vez."

 

 

In Reflexos, Richard Towers, Neoma Produções, 2011 (págs. 7-8)

Excerto de "Tempo"

 

    O tempo é pensamento. O tempo é acção. O tempo é conhecimento. O tempo é tudo aquilo que não é palpável, contável. É tudo aquilo que pensamos e sentimos. (...) Se, tal como no cinema, nos movêssemos por frames, não seríamos diferentes do relógio: um tique-taque infindável e sem sentido, sem objectivo. Nós somos pensamento. As nossas acções definem-se por impulsos não cronometráveis, por actos não controláveis ou enquadráveis numa qualquer teoria. A existência escapa a automatismos tal como o tempo foge aos princípios convencionais. O tempo meteorológico obedece a uma série de leis para decretar chuva ou sol, porém, nunca conseguimos saber com exactidão o que vai acontecer; limitamo-nos a tentar adivinhar. É essa imprevisibilidade que torna a existência tão surpreendente. Imaginemos a vida num padrão constante e imutável. Não necessitaríamos de conceitos como presente, passado ou futuro, pois todos os instantes seriam iguais. Tentarmos padronizar o que vemos ou sentimos é o nosso maior erro, pois no dia em que isso se torne possível, deixará de haver sentido para as coisas, pois todas terão perdido a sua verdadeira magia: a imprevisibilidade. (...) De facto, o melhor que tem a vida é mesmo essa centelha de dúvida que brilha a cada instante, que procuramos perceber sem nunca a entendermos, e com isso nos regozijamos. Pois descobrir o padrão da existência é descodificar a vida em todos os sentidos. E nessa realidade deixaria de haver existência. Não seria diferente da morte – uma linha única e infindável.

 

In Tempo, Richard Towers, Neoma Produções, 2011 (pág. 82)

 

 

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